REENCONTRO

Reencontrei alguém que eu perdera para as drogas e estou vivendo um milagre.
Tudo o que acontece, desde o momento em que desperto pela manhã até o momento em que adormeço a noite, eu percepciono de uma nova forma.
Até meu sono mudou. Saiu do estado de alerta.
Eu tinha um sonho recorrente no qual nós dois vivíamos felizes até que, por descuido, ele ingeria algo que continha um veneno letal.
Mas ele continuava feliz, ignorando o fato de estar envenenado.
No entanto eu perdia minha alegria para o reconhecimento da eminência do seu fim.
O sonho a noite e, durante o dia a consciência de que ele estava se destruindo.
Eu deveria tê-lo esquecido, mas nunca consegui.
Um raro caso onde o medo de perder para sempre foi maior do que a esperança de ter de volta. E que, ainda assim, resultou no reencontro.
Hoje estou em modo descanso - mesmo que esteja correndo numa esteira fazendo um exame de esforço, me sinto descansada.
Descansada de um medo que assombrou minha vida todos os dias durante décadas.
Medo de que ele desistisse e deixasse que o álcool e as drogas determinassem o seu fim.
Quem sente esse medo sabe as proporções que ele pode tomar.
O mais tranquilo passeio num parque florido em plena  primavera é tenso.
O mais leve sorriso esboçado num momento feliz é pesado.
Nada é leve. Nem mesmo a fé.
Quando tememos perder alguém para as drogas, a fé que temos carrega o peso da desilusão.



Eu e ele temos quase a mesma idade. Vivi no máximo um ano neste mundo sem sua presença.
Não lembro da minha vida sem ele.
Mas aquele garoto, com quem brinquei e briguei na infância e com quem contava para viver minha adolescência, desapareceu em algum lugar na estrada da juventude.
Não desapareceu subitamente. Ele foi sumindo aos poucos. Como se tivesse pego a bifurcação da estrada sem olhar pra trás.
Eu permaneci lá, naquela bifurcação, olhando seu vulto cada vez mais distante.
Sei que a minha vida seguiu e que foi fruto da minha própria caminhada.
Mas sempre vivi com a sensação de que estava lá, parada, esperando ele voltar.
Até que ele voltou.
Voltou aos poucos, assim como se foi.
A volta é lenta, talvez mais lenta que a partida.
Como uma imagem distante vindo em minha direção, ele foi ficando cada vez mais nítido.
E eu o reconheci.
Um difícil reconhecimento, décadas depois.
Mas eu o reconheci.
Primeiro a respiração.
Depois o tom da voz. 
E no mais sublime momento, reconheci a direção e a profundidade do seu olhar. 
A mesma de quando éramos crianças.
Neste olhar estava clara a decisão de lutar pela vida.
Decidiu viver, só por hoje
É um vencedor.
O maior dos vencedores.
Vence a si  mesmo, um dia de cada vez.
Hoje ele leva uma vida simples e calma.
Mantém dia a dia uma rotina que lhe protege das armadilhas do vício - do perigo das bifurcações.

Num dia quente deste verão eu o vi inteiro na minha frente.
Ele me convidou para tomarmos um sorvete.
Fiquei olhando embevecida ele tomar seu sorvete como quem toma de volta a adolescência roubada. Como quem toma a vida levada num sequestro impagável.
Ao seu lado eu era uma garotinha orgulhosa de tê-lo comigo.
Um orgulho sem razão.
Orgulhosa por ele estar ali, somente.
Nada do que eu dissesse ou fizesse demonstraria o que eu estava sentindo.
Graças a Deus existe o silêncio.

A decisão de voltar foi dele e cabe somente a ele decidir se vai permanecer.
Reconheço que cada instante ao seu lado é uma dádiva.
As minhas orações são para que ele fique. Para que ele nunca mais vá embora.
Passaram-se meses desde sua volta.
Porém, mesmo que tivesse sido um único instante já teria valido a espera.
Não ouso pensar no amanhã.
Encontros são bênçãos.
Reencontros são milagres.























Texto extraído do Blog "Grayceando":





UMA TARDE SOMBRIA

A tarde era sombria.

O frio e o vento caracterizavam Rio Grande no inverno.

De avental branco, óculos no rosto, livro de anotações embaixo do braço, documentos policiais e caneta na mão, por mais uma das inúmeras vezes, entrei no necrotério do Posto Médico-legal onde exerço a função de perito médico-legista.


O trabalho seria igual a tantos os outros: buscar através de necropsia a causa da morte.

Diferentes estavam os estados de meu espírito, minha alma e meus sentimentos. Nem sempre são os mesmos. Variam por fatores que desconheço.

É verdade que a rotina do trabalho tornou-me mais duro embora nunca tenha conseguido fazer-me insensível. Não raro percebo alguma lágrima rolando pelo rosto. Rapidamente seco e sempre atribuo a algum cheiro mais forte.

Por vezes olho o Cristo que coloquei na parede e pergunto: - por quê? Estranho, mas sempre ouço alguma resposta.

Em cima da mesa fria o corpo de um homem, meia idade, quase igualmente gelado e rígido. As vestes maltrapilhas trajadas como uniforme do abandono; o rosto inchado por edema; barriga crescida por ascite; feridas em antebraços e pernas por pelagra, pelos púbicos com implantação feminina por alteração hormonal; musculatura frágil por falta de proteínas, cheiro fétido por esquecimento dos hábitos de higiene.

Olhei para o meu auxiliar e fiz o diagnóstico: - mais um bebum! Cirrose!

A necropsia transcorreu com a frieza e a técnica científica necessária. O diagnóstico foi mesmo de cirrose. Fígado destruído, baço aumentado, varizes no esôfago, edema no cérebro, inflamação no estomago repleto de liquido transparente com cheiro forte de álcool. Mas a tarde era sombria, havia frio e vento e meu espírito, minha alma e meus sentimentos, igualmente, pareciam combinar com o clima.

Olhei para o corpo do homem, suas roupas, sua condição e mais uma vez sequei uma lágrima que rolava pelo rosto. Talvez fosse do cheiro forte do formol que havia na sala.

Quando percebi que não havia formol na sala deparei-me com meu pensamento imaginando a história daquele homem, suas razões, seus sofrimentos.


Teria conhecido os pais? Tido irmãos? Teria estudado, trabalhado? Teria amado? Também teria sido amado? Teria constituído uma família com casa, mulher, filhos, cachorro, sogra? Afinal, qual seria seu desencanto? As injustiças do mundo? Teria a vida sido a ele mais justa que a tantos outros?

Minha reflexão não trouxe qualquer resposta. Por mais que formulasse perguntas a mim mesmo, mais dúvidas encontrava.

Saí da sala de necropsias convencido que seria inútil buscar respostas. Era mais um bebum morto, mais uma cirrose diagnosticada. Nisso não havia novidade; diferentes estavam meu espírito, minha alma e meus sentimentos... Sombrios como a tarde.

Entrei no setor administrativo do Posto para preencher a Declaração de Óbito.


Num banco pobre de madeira estavam sentados a esposa, um filho e uma filha. Olhei para todos e a cada um deles. Penetrei profundamente em suas almas por seus olhos parados. Por instantes conversamos sem trocar uma palavra. Eu não estava ali para anunciar a morte que eles já sabiam, nem para dar um diagnostico que, igualmente, conheciam. Eu apenas estava ali, em nome da lei, para entregar-lhes um documento que possibilitaria o enterro do cadáver de um esposo e pai.

Olhei a mulher e conversamos. Soube que estavam separados fazia algum tempo. Depois de muitos anos de sofrimento, havia buscado viver sem marido. Ela não chorava de derramar lágrimas. Em seu semblante havia marcas de vivencias muito mais profundas que as deixadas por sua idade. Não havia ódio. Havia mágoa. Uma profunda mágoa, uma tristeza do tamanho do mundo. Seu depoimento, insistindo em testemunhar que quando ele não bebia era um homem bom, saía por voz serena, sem culpas ou lamentos. Dava a perceber que o amor que havia existido deixou algum tipo de sentimento bom. Não sei qual. Restava, talvez, alguma lembrança. Quem sabe do primeiro beijo, pensei eu.

Depois olhei o filho. Tinha os olhos de quem não havia chorado uma disposição de manter-se firme. Não consegui encontrar desprezo em sua expressão. Havia dor. Seu herói havia tombado. Não havia mais tempo de retomar qualquer conversa.


A filha não se importava de esconder o choro. Adolescente mais nova que o filho estampava em seu rostinho um misto de pena e saudade. Talvez, pensei eu, lembrasse de um dia do seu aniversario e a presença do pai sóbrio.

Com o olhar da mulher e dos filhos fixados em minha mente voltei para casa.

O dia parecia-me mais sombrio, a chuva e o vento mais fortes.

A mulher não recordou das agressões sofridas. O filho não contou vergonhas passadas. A filha desconsiderou as ausências havidas.

E eu, não havia realizado a necropsia em mais um bebum: havia encontrado o cadáver de um homem que amou, foi muito amado e, lamentavelmente, padeceu de uma doença chamada alcoolismo.



Dr. Flávio Ennes Cardone
Médico Legista/RS

Vivencia Nº111 – Janeiro/Fevereiro - 2008


DEPENDENTES QUÍMICOS

Dependentes Químicos: Pacientes Difíceis?


Eles me ensinaram a viver um dia de cada vez. Muitos colegas psicólogos e psiquiatras me perguntam como fui me apaixonar pela área de dependências química, pois dentro da psiquiatria são considerados pacientes difíceis porque "não querem se ajudar", "têm pouca aderência ao tratamento" e "são os últimos a reconhecerem a sua doença e a necessidade de ajuda". Em tudo isso há pouco ou muito de verdade, mas vamos analisar mais cuidadosamente as características destes meus amados pacientes...


Como é a vivência?

O uso da substância química: álcool ou outras drogas altera o comportamento ocasionando uma "inflação". O sujeito se supõe todo poderoso e capaz de realizar tarefas além de sua capacidade, visto que o álcool ou a droga mudam também a percepção da realidade.

Por outro lado, na ausência da bebida ou da droga, a situação se inverte e o individuo se vê mais frágil e impotente do que nunca, não conseguindo às vezes nem se olhar no espelho, de tão humilhado que se sente ao se lembrar do que "aprontou" na noite ou nos dias anteriores.
Sim, o adicto, aquele que "adiciona" algo a seu corpo, acaba sendo "duas" pessoas: o super-homem, movido a "combustíveis especiais" para passar pela vida sem senti-la, e o bêbado de sarjeta, o pobre coitado que não aguenta consigo mesmo. A modificação de sua percepção vai acontecendo à sua própria revelia, tanto que ele mesmo é o ultimo a percebê-la.


Primeiro é a esposa ou parceiro quem reclama que ele ou ela já não lhe dá atenção como antes, preferindo sempre o álcool ou a droga; depois, são os pais ou filhos (se os tiver) que se queixam de sua ausência e por último, o patrão ou colegas de emprego ou escola, muitas vezes os mais tolerantes com o uso que acabam se cansando de encobrir as faltas no trabalho e as "mancadas" nas tarefas de equipe que o adicto acaba cometendo, por conta das inúmeras "ressacas" e inadequações por aparecer "usado".

Quase sempre o dependente químico é levado a tratamento com um certo "empurrãozinho" daqueles que o amam e que justamente por se importarem com ele (ela) não se conformam com o seu modo de vida autodestrutivo e terminam por estimulá-lo a fazer alguma coisa para mudar o estilo de vida.

O dependente que se recupera...

Ao longo de minha jornada ao lado de dependentes químicos, posso dizer que tive o privilégio de conhecer muitas histórias de recuperação maravilhosas. São pessoas que depois de terem visto o "inferno" de perto de terem tornado também um "inferno" a vida de seus entes queridos, puderam dar uma guinada e voltar a ser gente, e, diga-se de passagem, gente muito especial!

Historias de verdade de quem reconstruiu a dignidade de viver, não tendo quase nada por onde começar.

Tal qual o mito de Dioniso, o deus Grego do vinho, que depois de esquartejado pelos Titãs foi reconstituído a partir do coração, tendo visto meus clientes e amigos dependentes de álcool e drogas se voltarem corajosamente para suas emoções em "cacos", e irem colando os pedacinhos até se tornarem inteiros novamente.

Recuperação que se faz com humildade e sempre; como eles me ensinaram: "Um dia de cada vez".




(Dra. Ana Lúcia Mesquita Mazzei Massoni
Psicóloga Clinica – Especialista em Dependência Química)

Vivência n° 82 – MARÇO/ABRIL 2003

ÁLCOOL, DROGAS E ADOLESCÊNCIA

Vídeo dedicado à todos os pais que se preocupam com seus filhos.  Vale a pena assistir!
Clique no link ou na imagem abaixo:


http://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=FoorfhEa770

http://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=FoorfhEa770



24 horas de muita paz e serenidade a todos!

HERÓI ANÔNIMO

O que ganha uma pessoa que faz o bem? 


Talvez não ganhe riqueza ou fama, mas certamente ganhará o que o dinheiro não compra. O Amor.

Assita o vídeo através do link abaixo.  Faça um fim de semana diferente!

http://www.youtube.com/watch?v=NpCrAqnudzQ


https://www.youtube.com/watch?v=NpCrAqnudzQ
https://www.youtube.com/watch?v=NpCrAqnudzQ


A TÁTICA DO AVESTRUZ

Nas arquibancadas do estádio do Maracanã existem balcões onde se vende cerveja durante os jogos de futebol. Reparem como lá ficam pessoas bebendo o tempo todo, de costas para o campo. Para assistir ao jogo, bastaria virar o corpo - mas não o fazem. Talvez não gostem de futebol? No entanto, afirmam categoricamente serem torcedores ardorosos de um dos times e não perderiam uma partida por nada deste mundo.

Vejamos outra cena, um dia de verão, na praia: muita gente passa o dia todo bebendo, debaixo de barracas quentíssimas, sem pegar sol ou cair na água. Apesar disso, eles dizem adorar uma praia, a ponto de frequentá-la todo fim de semana.

Estas situações refletem o mais constante sintoma da doença alcoolismo - a negação - e podem até ter algo de engraçado, mas constituem verdadeira tragédia para o alcoólico, que frequentemente morre negando sua enfermidade.

A experiência mostra só se recuperar aquele que for capaz de ultrapassar esta formidável barreira, ao conseguir admitir-se impotente frente ao álcool.

Ao negar sua perda de controle, o alcoólico não é mentiroso, pelo menos conscientemente, mesmo porque esta perda acontece de forma lenta e progressiva. No inicio, ainda há algum controle, com ele bebendo só nos fins de semana ou após certas horas do dia. Aos poucos, o doente vai, porém, criando um manto de fantasia, que o faz ser o primeiro a acreditar não ter problemas com álcool.

Trata-se de um mecanismo psíquico de proteção, para enfrentar a dura realidade de estar tendo comportamentos irresponsáveis.

Paradoxalmente, não consegue viver sem a bebida, mesmo reconhecendo ser, em certas ocasiões, o consumo exagerado. A explicação, para ele, está nos sérios problemas que vem enfrentando no momento; se os problemas desaparecessem, voltaria a beber controladamente.

Assim, enquanto aguarda o milagre, vai bebendo cada vez mais.

Este mecanismo de negação, que se desenvolve dentro da personalidade do individuo, não se limita apenas à afirmativa, para si e para os outros, de que não é alcoólico. È necessário também inventar uma série de desculpas, para manter uma aparente lógica nas coisas que se anda fazendo.

Este manto de fantasia, fabricado por ele mesmo, fica cada vez mais duro, mais resistente, até isolar o doente do mundo real, como se fosse uma larva do bicho-da-seda envolvida no casulo.


É claro que as coisas continuam existindo como são, o emprego, a família, os amigos, mas tudo isso torna-se a cada dia menos importante. Os mais íntimos questionam: "Por que ele faz isso conosco? Será que não gosta mais da gente?" Ou afirmam: "Se você me amasse, parava de beber!" São questões que incomodam, despertam sentimentos de remorso, culpa e autopiedade, mas não sabe resolver, por julgar impossível separar-se do companheiro álcool. Então ele nega os fatos, inventa justificativas, faz promessas as quais não consegue cumprir, tudo o que for possível para se fechar cada vez mais dentro de um outro mundo, só existente no seu delírio - mas que é só seu, seu mundo de negação.

Para conviver melhor com sua fantasia, o alcoólico passa a só frequentar lugares onde haja bastante bebida e selecionar amizades entre gente que também bebe. Se for convidado para um aniversário de criança, sabendo que só vai encontrar bolo de chocolate e coca cola, recusa, dizendo não ter paciência para aguentar este tipo de festa. Mas é capaz de pegar três ônibus para ir a um churrasco na casa de um desconhecido. Pensa em álcool todas as horas do dia: quando será que vou poder tomar a primeira? A que horas o bar do hotel fecha? Não esquecer, os supermercados fecham aos domingos! Lá no sítio vai ter bebida? É melhor garantir, levando uma garrafa na mala!

Para melhor entender o processo, substituamos a palavra "álcool" por "azeitonas". Quando será que vou comer a primeira azeitona hoje? Será que lá no sitio há azeitonas? É melhor garantir: levo umas latas na mala! Fica bastante estranho: qualquer pessoa que só pensasse em azeitonas seria identificada como portadora de um problema psíquico. Mas o dependente químico do álcool continua afirmando ser normal seu comportamento.

Na tarefa de continuar negando seu alcoolismo, o alcoólico tem também de aprender a ser esperto, desenvolvendo a habilidade de esconder o quanto anda bebendo. Muitas vezes para de beber dentro de casa, mas a toda hora tem de sair para comprar cigarros. Na rua, frequenta muitos botequins, evitando tomar mais que duas ou três doses no mesmo lugar, para não ser identificado como beberrão. Às vezes começa a beber em um bairro, termina em outro. Bebe no bar, antes da festa, para dar a impressão de estar bebendo pouco. Escolhe vodca, porque ouviu dizer que não dá cheiro. Anda sempre com balas e pastilhas de hortelã, para disfarçar o hálito. Enfim, esconder seu alcoolismo dos outros passa a ser procedimento de rotina, a ocupar boa parte da sua atenção.


Já para provar a si mesmo não ser alcoólico, os mecanismos de negação são outros:

1. Tenta beber menos quantidade, embora com a mesma frequência.

2. Tenta beber com menos frequência, embora a mesma quantidade.

3. Tenta não beber durante a semana de trabalho, mas fica contando os dias e horas que faltam para a sexta-feira chegar.

4. Tenta usar outras drogas para diminuir a quantidade de bebida, tomando tranquilizantes de manhã, para parar de tremer, ou anfetaminas de noite, para poder dirigir o carro.

5. Muda a marca ou tipo de bebida, assumindo que a anterior é que lhe fazia mal. Ilude-se trocando um litro diário de cachaça, por 5 litros de cerveja, achando que assim bebe menos álcool. Sendo rico, substitui uísque nacional, por outro importado.


6. Fica temporariamente em abstinência, por exemplo, quando internado, para desintoxicar, quando obrigado a tomar antibióticos ou apenas "para dar um tempo", depois de uma consulta médica preocupante. Estes períodos de abstinência têm data marcada para acabar e seu fim é ansiosamente esperado. Quando terminam, o alcoólico acha que depois de tanto sacrifício agora ele merece tomar "uma só" e tudo começa de novo, detonado pelas poderosas forças da dependência química.

Os períodos de abstinência servem para afirmar e reforça cada vez mais a negação, embora só sejam conseguidos à custa de intenso sofrimento emocional. O objetivo é provar a si mesmo e aos outros não ser alcoólico, que domina perfeitamente a situação e para de beber quando quer. As frases clássicas são: "Na verdade, eu não preciso beber, acontece que eu realmente gosto de álcool". Ou então: "Se você tivesse em sua vida os problemas que tenho, iria beber ainda mais do que eu".

À medida que a doença progride, mais este manto de fantasia impede o doente de ver sua realidade. Ele muda de comportamento e atitudes, perde seus valores, cada vez mais enredado na teia da dependência. Basta ler o Livro Azul de Alcoólicos Anônimos, para ver como duas emoções básicas, orgulho e medo, tão saudáveis quando baseadas em fatos reais, podem tornar-se exasperadas e delirantes, originando as mais variadas turbulências de raiva, inveja, ciúme e ódio.

O alcoólico age ao sabor da primeira emoção descontrolada que lhe vem a cabeça e, quando as coisas não dão certo, bota a culpa nos outros ou nas situações de vida. Expectativas fantasiosas tornam-se regra e, como não se realizam, trazem frustrações, autopiedade e necessidade ainda maior de bebida.

Neste ponto, o manto da fantasia confunde-se com a carapuça da negação, dura, resistente, impenetrável pelo lado de fora, como o casulo. Porem, lá dentro, o bicho-da-seda pode encontrar forças para rompê-lo e, ao livrar-se, sair da escuridão para a luz.

Como o alcoólatra, que, vencendo a negação ao reconhecer sua impotência frente ao álcool, encontra o caminho da recuperação e da vida.

E de repente descobre que não gosta tanto assim de praia, nem de frequentar o estádio do Maracanã...




Dr. Alberto Duringer 
Médico no Rio de Janeiro, Conselheiro no Conselho Estadual de Entorpecentes.

Vivência n° 19 - Janeiro/Março 1992